A reestruturação da Esplanada dos Ministérios pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por meio da Medida Provisória 1.154/2023, mexeu com a agricultura mais do que com qualquer outro setor, e pode acabar se tornando indigesta para as relações do governo com o Congresso.
A repercussão continua muito ruim no Parlamento e, segundo analistas políticos, ou o governo abre uma frente de negociação envolvendo as medidas que esvaziaram as atribuições do Ministério da Agricultura (Mapa) ou entra em rota de colisão frontal com a bancada mais bem estruturada em Brasília. E com alto risco de derrota, já que a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) chegou turbinada à nova legislatura, com quase 300 integrantes.
Como a MP pode ser prorrogada uma vez, por mais 60 dias, o Planalto ainda conseguirá empurrar o problema para frente. A controvérsia, contudo, não dá sinais de arrefecimento.
Para Lucas Fernandes, coordenador de análise política da consultoria BMJ, essa é uma briga que Lula provavelmente vai dar um jeito de evitar, ou, pelo menos, atenuar. Principalmente se o Congresso aprovar emendas que recoloquem na pasta da Agricultura a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que foram transferidos pela MP para os ministérios do Desenvolvimento Agrário e Meio Ambiente, respectivamente.
Nem o veto presidencial a eventuais emendas pode funcionar. “O presidente não pode vetar um órgão, se ele veta um órgão, ele deixa de existir, o que não está previsto em lei. Essas MPs são difíceis de serem modificadas depois que o Congresso dá uma visão”, avalia Fernandes.
O presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, deputado federal Pedro Lupion (PP-PR), diz não questionar a autonomia do governo para montar suas estruturas administrativas. Mas reage ao que vê como desmonte.
“Cabe a cada governo, dentro do seu planejamento, organizar a Esplanada dos Ministérios da maneira como bem entender e que achar que é correto. Agora, quando a gente trata da Conab, que é o órgão pensador do agro brasileiro, que faz os planejamentos, que vê o tamanho da safra, o que vamos precisar de seguro, quais os números que estamos enfrentando, essa sim tem que estar muito próxima do ministro da Agricultura e da equipe do ministério”, diz Lupion. “A secretaria de política agrícola acessa a Conab de minuto em minuto para pedir informações. Não há lógica nessa divisão.”
Uma das intenções declaradas do governo Lula ao levar a Conab para o Desenvolvimento Agrário é a reativação da política de estoques públicos reguladores de alimentos – uma ferramenta do passado que não funciona mais, segundo afirmou à Gazeta do Povo Ivan Wedekin, economista que foi secretário de Políticas Agrícolas no primeiro mandato de Lula.
“Essa operação ficou absolutamente desnecessária. Esses três produtos (arroz, trigo e milho) estão com preços bem acima dos preços de garantia. Então, esse lado de formação de estoques da Conab caiu em desuso. Nesse mercado, seja pelos preços internacionais, seja pela melhoria de logística, a Conab ficou de mãos vazias”, diz.
Em vez da retomada de políticas em desuso e da mudança de endereço da Conab, a ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina propõe sua modernização, transformando a empresa pública numa agência de inteligência estratégica. “Isso já está no forno, pronto para sair. E achamos que o melhor lugar seria de volta no Ministério da Agricultura. Vamos sugerir isso ao governo”, afirmou.
Da mesma forma, o setor reage contra a migração do CAR para a pasta de Marina Silva. O cadastro é uma obrigação legal, em que o produtor declara as condições de uso de sua propriedade, o que é lavoura, o que é mata ciliar ou reserva legal. Para corrigir inconformidades, recompor ou compensar áreas de preservação, existe o programa de regularização ambiental. O processo começa no governo federal e termina nos estados.
“Isso não tem que estar no Meio Ambiente. Não é uma questão ideológica do setor, é técnica, de conhecermos a produção agrícola brasileira, onde está e como está sendo feita”, sublinha Lupion.
Os integrantes da FPA se reuniram em almoço na terça-feira (14), para o qual foram convidados quatro ex-ministros da Agricultura, em que o principal item do menu foi uma espécie de desagravo à pasta.
Não ajudaram a desanuviar o ambiente as recentes declarações do ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, de que os quase 400 mil títulos de propriedade rural emitidos no governo Bolsonaro não valem mais do que papel de pão.
A fala de Teixeira incomodou mais do que a própria transferência do Incra ao Ministério do Desenvolvimento Agrário.
“Não é este o objetivo da reforma agrária? Como é que pode o ministro do Desenvolvimento Agrário dizer que esse título não vale um papel de pão? É preciso respeito com essas 400 mil famílias, mais de um milhão de pessoas atingidas diretamente por isso”, reagiu o presidente da FPA.
“Queremos que todo o trabalho que foi feito nos últimos quatro anos não seja simplesmente tratado como chacota. Precisamos de um mínimo de garantia, de segurança jurídica para esses produtores, que a partir do momento que receberam o título passaram a ser proprietários rurais, com condição de acessar crédito, vender sua área, pegar dinheiro no banco e ter renda. Eles deixam de ser um movimento social, de ser um assentado da reforma agrária para ser um proprietário rural. Isso é um ganho para as pessoas”, enfatiza Lupion.
Com ações tão articuladas para descontentar o agronegócio, Lula provavelmente colocou o bode na sala, sabendo que teria de negociar. Na avaliação do cientista político Cristiano Noronha, da Arko Advice, ao anunciar 37 ministérios, Lula “puxou algumas coisas” do Ministério da Agricultura, para não dar a impressão de que o Desenvolvimento Agrário e o Meio Ambiente começariam esvaziados.
“O governo tem maioria no papel, mas não é ampla, geral e irrestrita. Ela vai variar de acordo com o tema que for votado. A bancada da agricultura pode ter força suficiente para bancar emendas. Se ela se organizar e fechar questão neste ponto, o governo terá de ceder e devolver alguma coisa para o Ministério da Agricultura”, avalia Noronha.
Uma saída provável, segundo Fernandes, da BMJ, seria insistir com o CAR no Meio Ambiente, mas devolver a Conab ao Ministério da Agricultura.
“Acredito que o Lula entra frágil no Congresso, não está com uma maioria tão confortável, especialmente na Câmara. Então ele vai ter que escolher muito bem as batalhas e não vai querer ficar dando murro em ponta de faca por essa questão. Outros pontos são mais sensíveis e vão acabar sendo priorizados. O Lula ainda vai ter que aprovar um mecanismo fiscal para substituir o teto de gastos, então comprar logo de largada essa briga com o agro não vai ser positivo para a governabilidade”, conclui.
Há outros pontos sensíveis impostos por decreto, no início do governo, que podem ser revistos por pressão do Congresso. A transferência do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Banco Central para o Ministério da Fazenda, por exemplo, é vista por alguns parlamentares como politização da estrutura de combate à corrupção.
“Qual seria o motivo técnico que levou o novo governo a transferir o Coaf do Banco Central autônomo para o Ministério da Fazenda político?”, questionou o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) logo após o anúncio. Em sua época de ministro, em 2019, Moro conseguiu levar o Coaf para o Ministério da Justiça por alguns meses, mas a estrutura acabou sendo transferida por MP de Bolsonaro para o Ministério da Economia e, depois, para o Banco Central.
Não há previsão ainda de quando o Parlamento começará a analisar as quase 30 medidas provisórias que estão na fila, algumas ainda do governo Bolsonaro. Cada MP pode vigorar, no máximo, por 120 dias. Em relação ao desmonte da pasta da Agricultura, a intenção da FPA é levar o debate às comissões especiais, para expor ao máximo as inconsistências da medida.
Fonte: Gazeta do Povo / Foto: Divulgação/FPA