As crianças brasileiras estão consumindo cada vez mais produtos industrializados e ultraprocessados, além de haver também um incremento da inclusão de doces nos cardápios. Pesquisas recentes, desenvolvidas por diferentes entidades, confirmam essa tendência, intensificada na pandemia, tanto pela maior praticidade na ingestão de tais alimentos, quanto pela difusão da ideia de que alguns alimentos industrializados podem ser considerados naturais.
O isolamento social, responsável por manter as pessoas confinadas em suas casas durante meses, dificultou consideravelmente o acesso aos supermercados e feiras livres. Tal medida levou grande parte dos brasileiros a optarem por alimentos industrializados, por serem mais práticos, duráveis e baratos. O estudo “Alimentação na Primeira Infância: conhecimentos, atitudes e práticas de beneficiários do Bolsa Família”, realizado pelo UNICEF (Fundo das Nações Unidas para Infância), aponta que 80% das crianças entrevistadas, de até 6 anos, haviam consumido alimentos industrializados no dia anterior.
Os entrevistados ainda relatam que a preferência por tais alimentos se dá pelo sabor (46%), preço (24%) e praticidade (17%). Entre os mais consumidos estão: biscoitos salgados ou recheados e bebidas açucaradas, como refrigerantes e achocolatados. Um dado surpreende: 83% dos entrevistados não consideram que seus filhos ingeriram mais alimentos industrializados do que deveriam, enquanto 47% associam pelo menos um alimento ultraprocessado como parte de uma alimentação saudável. A baixa adesão ao aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses de vida, que atualmente é de apenas 45,7%, de acordo com o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil, torna o cenário ainda mais preocupante.
“A alimentação saudável na primeira infância se inicia com o leite materno. Por outro lado, o consumo de açúcar pode levar a um ganho de peso inadequado e causar doenças crônicas no adulto. A criança, segundo o guia alimentar, já apresenta uma tendência natural a aceitar o paladar doce. Se ela for acostumada a receber alimentos adoçados poderá rejeitar alimentos que despertam outros sabores, como verduras e legumes. Nessa fase é muito importante a construção do paladar. A alimentação variada estimula os sentidos com as cores, sabores e texturas diferentes” relata Marisa da Matta Aprile, pediatra e membro do Departamento de Aleitamento Materno da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP).
Falta ferro e vitamina na dieta
Os 3 alimentos ultraprocessados mais percebidos pelos pais como saudáveis foram: pão de forma (47%), cereais matinais e achocolatados (35%) e bebidas lácteas (23%). O estudo ainda revelou que mais de 35% das crianças entrevistadas não ingerem a quantidade recomendada de ferro e 46% têm deficiência de vitamina A.
O estudo realizado pela UNICEF aponta para a crise da alimentação saudável das crianças, que se aprofundou ainda mais durante e também por causa da pandemia. Os resultados demonstraram a dificuldade das famílias em identificarem o que é saudável ou não, além da falta de preocupação com a baixa nutritividade de alimentos ultraprocessados, inseridos cada vez mais na rotina alimentar dos brasileiros.
Por serem alimentos hiper paliativos, os doces trazem uma sensação de satisfação às crianças, tornando-as cada vez mais propensas a adotarem uma alimentação que não é considerada saudável. A pesquisa intitulada “O Universo da Lancheira”, encomendada pela Tetra Pak, empresa especializada na fabricação de embalagens para alimentos, aponta que, enquanto 29% das crianças passaram a consumir alimentos mais saudáveis, 38% aumentaram o consumo de doces, principalmente como forma de compensação.
Maria da Matta reforça os perigos por trás do uso de alimentos hipercalóricos como forma de compensação: “O organismo da criança que recebe doce como prêmio sinaliza áreas do hipotálamo relacionadas ao prazer e ao sistema de recompensa. Desta forma ,por entender que comer doce é uma forma de prazer, poderá ter consumo exagerado em situações de estresse ou tristeza.”
Frutas estão em baixa no cardápio
Não só o consumo de alimentos ultraprocessados aumentou durante a pandemia, como a ingestão de frutas e vegetais diminuiu. A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que apenas 24,1% dos brasileiros consome a quantidade mínima recomendada de frutas, legumes e vegetais. Já o estudo da Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (Vigitel) revela, ainda, que apenas 1 em cada 3 brasileiros tem o costume de consumir regularmente frutas e hortaliças e que apenas 32,7% consomem cinco porções diárias desses alimentos.
A falta de alimentos saudáveis na rotina das famílias brasileiras afeta diariamente a forma como as crianças se alimentam. Pais que entendem a necessidade de uma alimentação saudável e equilibrada tendem a incentivar que os filhos sigam os mesmos hábitos. “O ambiente familiar e o exemplo são importantes. Vejo que sempre que faço intervenções de mudança de estilo de vida nos pais, os filhos emagrecem. Eles aprendem e se espelham no comportamento dos pais”, relata a endocrinologista e metabologista Paula Pires.
Paula Pires ainda reforça que, o mais importante é que as crianças, desde a primeira infância, tenham uma boa relação com a alimentação:
“O mais importante é que a criança desenvolva uma boa relação com a comida, que experimente de tudo, com muita variedade e que as refeições não sejam sinônimo de ansiedade e angústia. Para isso, a prevenção da obesidade com foco em todos os pilares de um estilo saudável (como exercícios, sono, saúde mental) e não apenas na comida e peso é importante”.
Segundo a especialista, não se trata de cortar completamente a ingestão de alimentos industrializados. A parcimônia, atrelada ao consumo de variados tipos de alimento, é a medida mais importante, pontua Marisa da Matta. “O doce industrializado pode ser trocado por frutas, farinha integral e doces caseiros com ingredientes saudáveis. Deve-se evitar a frequência de alguns hábitos rotineiros, como a sobremesa doce, ou fazer lanches com doce. Se a criança já está acostumada a doces, a redução deve ser gradual. O exemplo é uma forma muito importante de estímulo.